O sociólogo francês Roger Caillois, em sua teoria da festa, opõe a efervescência da festa “à vida regular, ocupada pelos trabalhos cotidianos, tranquila, encerrada em um sistema de interditos, repleta de precauções”[1]. Embora os indivíduos localizem nas atividades cotidianas a satisfação de necessidades imediatas e desempenhe tais atividades com afinco, mais profundamente, é a memória de festas passadas e a expectativa de novas festas que os impulsionam cotidianamente, “pois para [o indivíduo] a festa constitui, em sua memória e seu desejo, o tempo das emoções intensas e da metamorfose de seu ser”[2].
Gala cotidiana, de Fernanda Gomes, complexifica o estatuto da festa, tal como o encontramos formulado em Caillois. Com uma poética que se alimenta da efervescência dos espaços públicos, a artista reconhece que entre o cotidiano de um espaço como, por exemplo, o Largo da Carioca, no centro do Rio de Janeiro, e a festa, a diferença é de grau, não de natureza. Isso não significa que Gomes não aposte no caráter apoteótico da festa e nas transformações subjetivas e coletivas que esta ruidosa associação de pessoas pode desencadear. Mas a festa já está lá, ela não é exterior ao cotidiano. Neste sentido, a intervenção da artista não propõe a instauração de uma ruptura radical com a vida de todos os dias, antes, ela a coloca entre parênteses por um determinado tempo.
Lançando mão de um dispositivo interativo do qual fazem parte o corpo da artista e o corpo do performer Elmir Mateus, e ancorado na convergência entre performance e intervenção urbana, Gala Cotidiana inscreve-se no cotidiano de espaços públicos da cidade do Rio de Janeiro, catalisando a energia festiva que habita virtualmente tais espaços. Se, pelas aglomerações de gente, pelas performances de artistas de rua e ambulantes, pelos isopores e churrasquinhos que deslocam o happy hour para a rua, podemos dizer que a festa é um elemento constituinte de tais espaços; a solenidade da festa de gala de Fernanda Gomes, para qual estão todos convidados, vem exaltar este espírito festivo que é, sem dúvida, um de nossos maiores patrimônios.
[1] Caillois, Roger. “O sagrado da transgressão: Teoria da festa”. Outras travessias, n. 19, tradução de Carlos Eduardo Schmidt Capela, Florianópolis, 2015, p. 15
[2] Ibid, p. 16
* texto escrito para “Gala Cotidiana”, série de performances que acontecerão a partir de amanhã em espaços públicos da cidade do Rio de Janeiro e que desembocam em exposição homônima, que acontecerá no Castelinho do Flamengo – Centro Cultural Oduvaldo Vianna Filho, de 10 a 26 de junho