O gesto criador foi, não poucas vezes, associado à arte da tecelagem. Contar bem uma história requer a paciência e o rigor que estão na origem dos mais belos tecidos. O próprio Cosmos, mitologicamente, foi concebido como uma enorme rede. Conta-se, ainda, que os famosos tapetes persas apresentam sempre uma falha, intencionalmente inscrita pelas tecelãs, que deixam o monopólio da perfeição nas mãos dos Deuses. A poética de Güler Ates, desenvolvida em vídeos, fotografias, gravuras e performances, alimenta-se da variedade de tramas proveniente de um contexto multicultural. Mas o multiculturalismo de Ates nada tem a ver com a forma conciliadora das tensões geopolíticas assumida por esta noção em discursos celebratórios, sem consistência histórica e, supostamente, sem posicionamento político.

O véu concentra as tensões que interessa à artista explorar. Elemento chave na construção do imaginário ocidental acerca da mulher oriental, ele adentra espaços arquitetônicos suntuosos e vinculados, em alguma medida, ao projeto colonizador. As tensões que emergem destas duas camadas que circundam o corpo da mulher – o véu e a arquitetura – não são arrefecidas pela artista, que as complexifica através de suas imagens que, simultaneamente, fundem as sensibilidades oriental e ocidental, e abrem uma janela através da qual podemos acessar a história colonial. Como diante de um tapete persa, ao nos aproximarmos das imagens de Ates deparamo-nos com a condensação de uma narrativa: a de construção do “Oriente” como Outro do “Ocidente”. Importante frisar que, com rigor de tecelã, Ates leva a cabo uma criteriosa pesquisa histórica diante de cada arquitetura, que será determinante para a definição da origem do tecido a ser portado como véu pela performer.
Atualmente baseada em Londres, Güler Ates nasceu no leste da Turquia e cresceu em um bairro de lata em Istanbul. Estes deslocamentos, que marcam a trajetória pessoal da artista, foi o combustível para a série de trabalhos realizados em 2014, durante uma residência artística no Rio de Janeiro. Se o dualismo colonial estrutura a produção europeia da artista, na série de obras produzidas no Brasil, este par é atenuado em favor da afirmação de uma outra sensibilidade. A arquitetura e o véu permanecem como motes, mas a distância entre essas duas camadas é diminuída e um novo espaço, o espaço público da cidade do Rio de Janeiro, ingressa nas imagens de Ates.

Dwelling (Habitação), por exemplo, foi uma performance na qual uma mulher percorreu as ruas do centro da cidade do Rio de Janeiro, portando um véu com dezenas de miniaturas de “barracos” pintados à mão acopladas em sua cauda. Com esta ação, a artista trouxe o bairro de lata turco no qual cresceu para o Rio e instaurou um processo de tradução cultural a partir do diálogo com a arquitetura das favelas da cidade. Em outra ação, intitulada Home (Lar), uma mulher transitou pela Lapa carregando uma casa na cauda de seu véu. A ação inspirada pela expressão “Home is where you are” (“Lar é onde você está”) explorou os processos subjetivos que emergem no trânsito por diferentes culturas. Em ambas as performances, como também em Objects (Objetos) – performance na qual o véu portado por uma mulher que circula na região do Saara (mercado popular no centro do Rio) conta com utensílios de cozinha tipicamente encontrados em casas populares bordados em sua cauda –, Güler Ates desdobra sua poética tecendo um diálogo íntimo com a cultura na qual ela se encontra.

As esculturas, as fotografias e os dois filmes em super-8 resultantes das ações realizadas pela artista no Rio de Janeiro restam inéditos no Brasil, mas parte de sua produção fotográfica pode ser vista, de 25 a 28 de agosto, no stand da Galeria Luciana Caravello na SP-arte/foto, que tem entrada gratuita e acontece no 3º piso do Shopping JK Iguatemi, em São Paulo.