Tornar-se estrangeiro de si mesmo

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Com o título Stanze per Stranieri (Quartos para estrangeiros), uma exposição reunindo obras dos alemães Jochen Fischer e Susanne Windelen e do italiano Domenico Pievani pode ser visitada até 27 de novembro na Porta Sant’Agostino, em Bergamo. O encontro entre os artistas data de 20 anos e a exposição, com curadoria de Enrico de Pascale, traz para o edifício de 1561 um desdobramento da mostra homônima, realizada pelos mesmos três artistas no primeiro semestre deste ano na Galeria de Arte de Sindenfilgen, na Alemanha. O título da mostra encerra, deliberadamente, uma ambiguidade. Ao mesmo tempo que indica acolhimento, supõe uma clivagem que diferencia o estrangeiro do nativo. Os vinte anos de trocas e trânsito entre Itália e Alemanha, encarnada na relação de amizade e colaboração artística entre Fischer, Windelen e Pievani reveste o título da exposição de uma positividade que, entretanto, não esvazia a crescente urgência política de se discutir o tema da hospitalidade em uma Europa na qual os processos migratórios passaram a ser descritos nos termos de uma “crise”.

Mas a centralidade da relação com o espaço na obra de cada um dos artistas acrescenta ainda outras camadas de sentido ao título da mostra. O edifício que abriga a exposição, a Porta Sant’Agostino, coloca novos desafios aos artistas. A edificação do século XVI, com todas as restrições estruturais e patrimoniais que impõe, transforma as próprias obras, em sua maioria instalações, em estrangeiras ao espaço. O controverso dispositivo de exposição de arte contemporânea do cubo branco cede lugar aqui a uma total despretensão à neutralidade espacial. A maioria dos trabalhos, já expostos em Sindenfilgen, são reinventados na ocupação deste espaço volumoso e anti-aderente – as paredes de pedra do século XVI não podem sofrer nenhuma intervenção -. O espaço é mais resistente às transformações do que as obras. A ideia do estrangeiro, portanto, excede a relação bi-lateral entre Itália e Alemanha que ganha forma na colaboração entre os artistas. Estrangeiras são também as obras de arte, quando estas se deslocam  no espaço e no tempo, e na medida em que não existem “fora” de uma realidade espaço-temporal.

Mas ao nos determos nas poéticas de cada um dos artistas, todos três trabalhando sobretudo com escultura e instalação, observamos que a condição de estrangeiro generaliza-se e comparece na exposição como condição ontológica do mundo que nos circunda. Grande parte da matéria que ganha forma nas esculturas e instalações reunidas em Stanze per Stranieri provém de um cotidiano banal e reconhecível. Os vestidos e a estrutura aramada em Trappole per gli occhi, #3 ou a cadeira de Paesaggio Alchemico, de Domenico Pievani; os pratos pintados ou a bolsa desconstruída em forma de elefante de Jochen Fischer; bem como os jornais que aderem às nuvens de Susanne Windelen restituem ao cotidiano do visitante o caráter estranho-familiar, o famoso unheimlich freudiano. Definitivamente, há uma política da hospitalidade em jogo em Stanze per Stranieri mas ela não se restringe aos intercâmbios pessoais e institucionais que estão na origem do projeto, ela se desdobra sobre o plano sensível no gesto, caro à poesia e à mais potente filosofia, de “tornar-se estrangeiro de si mesmo”.

Icaro Ferraz Vidal Junior

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